… vi o Benfica, o meu
Benfica sagrar-se Bi-Campeão Europeu!
Viseu, quarta-feira,
2 de Maio de 1962.
As “televisões”,
essas pequenas caixas que alguém um dia disse que tinham mudado o mundo,
contavam-se pelos dedos nos lares da província.
A minha terra não era
excepção e para mais a mais, ter a possibilidade de ver em directo algo de
único que iria acontecer, era ainda mais extraordinário. Se bem que no ano
anterior tivesse tido a felicidade de acompanhar meu Pai e assistido no mítico
Café Rossio à completa loucura que foi o jogo entre o Benfica e o colosso da Catalunha,
e tudo o que se seguiu após a inacreditável vitória sobre esse quase intocável
Barcelona de Czibor, Kocsis, Suarez e Kubala, desta vez, por motivos que a
memória dos tempos vai esbatendo, algo de diferente aconteceu, mas não menos
inesquecível.
Um puto remediado como
eu – que me perdoem os meus Companheiros Gloriosos, mas hoje irei falar sempre
na 1ª pessoa do singular – assumidamente Benfiquista, tinha sido “formalmente”
convidado por uma família sportinguista pequeno-burguesa, a assistir em sua
casa e em directo pela TV, do Estádio Olímpico de Amesterdão, à final da Taça
dos Clubes Campeões Europeus.
O Benfica, esse meu
Benfica de sempre, ia defrontar outro colosso Europeu, o Real Madrid, e aquele
garoto, que eu hoje, já velho e bem causticado pela vida estou neste momento a
vislumbrar, recordando-o com toda a nitidez, já trazia consigo desde que
nasceu, aquela Chama Imensa na sua gloriosa alma.
Para minha
felicidade, iria ver a mais empolgante final da Taça dos Clubes Campeões
Europeus de todos os tempos!
Quase me parece que
foi ontem, tal a intensidade e a emoção com que ainda tão jovem, vivi esse
jogo. E são de tal forma indescritíveis esses momentos, que não resisto a
tentar fazê-lo neste pequeno texto, para memória futura e como um testemunho
indelével para as novas gerações – os meus filhos Benfiquistas bem o merecem,
os filhos Benfiquistas de todos os Benfiquistas e em suma, todos aqueles
abençoados filhos que têm o Benfica como sua bandeira, também - como homenagem
aos grandes jogadores-heróis Benfiquistas desse memorável passado e em geral, a
todos aqueles que como eu, têm uma paixão eterna pelo Glorioso de Portugal.
Já lá vão cinquenta
anos!
O tempo, tal como
hoje, estava instável. Fim de tarde. Lá fora, na Rua 21 de Agosto do burgo
viseense, os aguaceiros curtos mas fortes, quase que pareciam cair ao ritmo dos
golos do Real.
Puskas, o seu temível
avançado-centro, em sete minutos, primeiro numa extraordinária arrancada com
remate de longe e depois numa simulação seguida de remate à entrada da área,
quase que arrasa o Benfica.
Nos inícios da década
de 60, a banda desenhada chegava devagarinho a Portugal. Começavam a aparecer,
ainda que com um pouco de atraso as primeiras publicações com aqueles que
viriam a ser os meus primeiros “heróis”, para além dos jogadores do Benfica –
Astérix e Lucky Luke.
Pois ao minuto 23 do
jogo, tal como sempre temiam Astérix e os seus indomáveis companheiros
gauleses, pareceu-me que o céu ia desabar sobre a minha cabeça.
Não havia também
nenhum buraco por onde eu me enfiasse e por isso lá continuei, meio
acabrunhado, encolhido e envergonhado.
Mal tinha começado o
desafio e já perdíamos por 2 a 0.Tremia de medo e estava assustado com aquela
furiosa e eficaz avalanche espanhola!
Ainda estava a tentar
recompor-me desse duplo abanão do húngaro ao serviço do Real, já o Benfica, não
se dando por vencido, tal qual aqueles intratáveis gauleses, fazia o primeiro
através do fantástico José Águas que com grande sentido de oportunidade recargou uma bola enviada ao poste por
Eusébio, na marcação de um livre, encostando para as redes de Araquistán.
O jogo continuava, a
esperança renascia, o Benfica lutava, os madridistas empenhavam-se, mas sempre
em contra-ataque!
Minuto 34. Cavém, o
enorme Cavém, um homem bom, do qual guardo gratas recordações desportivas e
pessoais, com quem ainda tive o prazer de conviver e de jogar uma “peladinha”,
arranca um portentoso remate fora da área ao ângulo superior direito da baliza
do guarda-redes madrileno fazendo estremecer pela primeira vez o todo-poderoso
Real Madrid e agitar num frémito louco as bandeiras gloriosas nas bancadas
“vermelhas” do Estádio Olímpico de Amesterdão.
Que golão!
2 a 2. Os meus olhos
brilharam e voltei a sorrir!
Consegui
“libertar-me”. Levantei-me como uma mola do pequeno “mocho” onde me sentava,
ergui as mãos ao céu, agora já infinito e bem alto, e gritei golo com todas as
minhas forças!
A dona de casa, uma
senhora, mãe de um sportinguista amigo que “partiu” cedo, sorriu de alegria
depois de me ver completamente desolado.
O Benfica estava
novamente a bater o pé aos espanhóis, depois de no ano anterior ter feito o
mesmo aos catalães.
O jogo, electrizante,
continuava. Não tinham passado muitos minutos e já o incontornável Puskas, num
remate sem hipóteses batia pela terceira vez Costa Pereira. Agora, os espanhóis
mantinham um maior volume de jogo atacante.
Engoli em seco e
disse para os meus botões:
- “Querem lá ver que
o filme inicial vai repetir-se?
Cabeçada de Di
Stéfano e bola na trave da baliza do Benfica!
Que susto!
Veio o intervalo e
com ele algum alívio. Afinal estávamos na luta e aquela “tremideira” inicial
tinha passado.
A crença, essa,
mantinha-se inabalável. Já tínhamos conseguido anular a desvantagem de dois
golos, porque não igualar outra vez a partida, fazendo os 3 a 3?
Reinício da
transmissão. Ligação à Eurovisão com a imagem de sempre e o respectivo hino.
Novamente Amesterdão e como que emergindo num preto e branco histórico, lá
estavam as inconfundíveis camisolas vermelhas, berrantes com a gloriosa águia
ao peito e aquela gola branca, solene, dos grandes momentos.
Olha, é o Benfica que lá vem! É o Coluna, o Germano, o
Mário João, o Cruz, o Cavém e o Zé Augusto! Olha, aqueles são o Ângelo e o Zé
Águas! E também lá está o Eusébio, o Simões e o Costa Pereira! Vamos lá
Benfica!
– exclamava eu, entusiasmado.
As pessoas,
admiradas, sorriam à minha volta. Não era qualquer pequenote que identificava
tão bem os jogadores do Benfica. Mas era assim e há bastante tempo. As
colecções de cromos e de “selos” dos rebuçados comprados respectivamente no
pequeno estabelecimento do “Jaiminho Filatélico” e na “tasca do Gaio” onde eu
jogava matraquilhos, ajudavam a reconhecê-los agora com mais ou menos
facilidade.
O Benfica jogava cada
vez melhor. Faltava o empate e a certeza da glória suprema estar cada vez mais
próxima.
Passavam pouco mais
de seis minutos do segundo tempo e o Benfica surpreendentemente carregava
forte. Num momento de grande inspiração surgiu Mário Coluna, e com ele, um
pontapé violentíssimo de fora da área, intencional, pleno de precisão. Bola no
fundo das redes e o Benfica empata 3 a 3!
Agora foi toda a
Europa que estremeceu e sentiu pela primeira vez o clamor do Grande Benfica – a
vitória contra o Barcelona, no ano anterior, não tinha sido por acaso. Mesmo a
empatar, o Benfica já estava por cima. O Benfica já mandava no jogo e uma
estrela de primeira grandeza com um brilho intenso, começava a despontar no
relvado do Olímpico de Amesterdão perante 60.000 espectadores. “O minino que é ouro” - segundo Bela
Guttmann, o “velho feiticeiro”, treinador do Benfica à época e um dos obreiros
da sua façanha europeia - começa com a sua categoria e talento a desorientar os
adversários. Em cima do quarto-de-hora, numa das suas imparáveis arrancadas,
Eusébio, ainda um catraio à vista dos senhores José Águas, Coluna e Germano, é
atirado “literalmente” ao ar por Pachín, defesa do Real Madrid. Penalty!
Senti, como depois
centenas de vezes aconteceu e ainda acontece, as fortes batidas em aceleração,
do meu coração. Que ansiedade, meu Deus!
- É o “pretinho” que
vai marcar! - disse eu com entusiasmo.
Golo!
Pus a minha cabeça
entre as minhas mãos e perguntei-me:
- “E agora, como vai
ser?”
A resposta foi rápida
e passados três curtos minutos, novamente aquele que viria a ser o melhor
jogador português de todos os tempos “arrumou” com o Real Madrid do grande Di
Stéfano, Puskas, Del Sol, Pachín, Gento e Santamaría!
Livre à entrada da
área do Real, a favor do Benfica. Coluna, com uma exibição galáctica no segundo
tempo, tal qual o lendário Germano, agarrou na “redondinha” e determinado como
sempre, colocou-a em posição. Eusébio também lá estava, a seu lado, como que um
afilhado aguardando pela benção do seu padrinho para dar início à sua
entronização real. “The King” como os ingleses ainda hoje lhe chamam,
espreitava a oportunidade para bisar depois de várias ameaças…
Tomou aquele balanço
único e bem característico da sua insuperável técnica, correu como sempre,
ligeiramente inclinado para a frente e com um remate inesquecível, arrancou
para a glória suprema – sua e do Benfica!
5 a 3!
Parecia um sonho,
aquela estrondosa vitória estava prestes a concretizar-se! O Benfica, o meu
querido Benfica estava às portas da glória!
Os minutos iam
passando e aquilo nunca mais acabava!
Ângelo, Cruz e Mário
João com aquele arreganho à Benfica lá iam, algumas das vezes muito a custo,
segurando a defesa, travando Gento, Puskas e Di Stéfano.
Já só faltava um
minuto!
Logo a seguir, Leo
Horn, o árbitro holandês, dá o desafio por terminado.
O Benfica é
Bi-Campeão Europeu!
Muita emoção, muita
alegria.
Orgulhoso, senti-me
gigante! Senti-me o maior da Europa, do mundo!
Fui desportivamente
felicitado com um grande aperto de mãos de parabéns pelos donos da casa e
agradeci-lhes infinitamente por me terem proporcionado a alegria de ter visto
com os meus próprios olhos algo que eu tanto desejava ver!
Por fim, só me lembro da
euforia na Rua Formosa. O tempo, chuvoso, não dava tréguas, mas mesmo assim uma
multidão exultava. Uns abraçando-se, outros gritando, Benfica! Benfica!
Benfica!
Olhei para o fim da
rua junto a uma praça, e vislumbrei outra multidão a subi-la num barulho
infernal, em completa loucura com música à mistura. Era um cortejo de centenas
de adeptos Benfiquistas, acompanhados pela banda do Lar de Santo António e com
uma grande tarja a encimá-lo – Benfica, Bi-Campeão Europeu!
E não me esqueço
também de um grande Benfiquista, que trazia sempre na lapela do seu casaco de
bombazina cor-de-mel um grande emblema do Benfica cravejado de pedras preciosas
(diamantes e rubis) – o já idoso “sr. Isidro do bairro”, fotógrafo do
antigamente, com a velha máquina de tripé junto ao antigo cartório e
tribunal da cidade, e um exímio “endireita” (para quem não sabe, um ou uma
“endireita” é uma pessoa que tem o dom, de com as suas mãos e os seus dedos
“endireitar” os ossos, os músculos e os tendões às pessoas que sofrem deste
tipo de maleitas) – com um chapéu-de-chuva sui
generis publicitando o bi-campeonato, alegremente decorado com emblemas e
motivos sobre o Benfica.
A chegada do cortejo
ao Rossio foi um estrondo.
Se no ano anterior
tinha assinado para sempre pelo Benfica, a partir deste dia nada mais foi
igual. Passei a ser um “combatente” Benfiquista de primeira linha, “contra
ventos e marés”.
O Benfica passou
inapelàvelmente a fazer parte integrante da minha vida.
Até morrer!
A história do Benfica
é épica! É ímpar e única!
Hoje pela manhã,
quando disse aos meus catraios, antes de irem para escola, que se comemoravam
os 50 anos deste feito inigualável e do qual por motivos óbvios não conseguem
ter a real dimensão do mesmo, disse-lhes:
- “Meus filhos, posso já cá não estar, mas acredito que
não tardará o tempo em que o Benfica chegará novamente ao topo da Europa e do
Mundo.
E aí irão ver o que é o Benfica.
Mesmo assim, e porque a minha fé é infinita e acredito
que o Benfica é uma força incomensurável ainda quero ver novamente, “com estes
meus olhos que a terra há-de comer” o nosso querido Benfica sagrar-se Campeão
Europeu!”
Mostrei-lhes a
litogravura desse tempo que meu Pai me deu e que guardo religiosamente e em que
estão esses 11 magníficos, posando para a posteridade.
Chorei de saudade e
de emoção, mas sempre com um sorriso de esperança e de fé!
Viva o Benfica!
Sempre!
GRÃO VASCO