2.5.12

Com estes meus olhos que a terra há-de comer…



… vi o Benfica, o meu Benfica sagrar-se Bi-Campeão Europeu!


Viseu, quarta-feira, 2 de Maio de 1962.


As “televisões”, essas pequenas caixas que alguém um dia disse que tinham mudado o mundo, contavam-se pelos dedos nos lares da província.

A minha terra não era excepção e para mais a mais, ter a possibilidade de ver em directo algo de único que iria acontecer, era ainda mais extraordinário. Se bem que no ano anterior tivesse tido a felicidade de acompanhar meu Pai e assistido no mítico Café Rossio à completa loucura que foi o jogo entre o Benfica e o colosso da Catalunha, e tudo o que se seguiu após a inacreditável vitória sobre esse quase intocável Barcelona de Czibor, Kocsis, Suarez e Kubala, desta vez, por motivos que a memória dos tempos vai esbatendo, algo de diferente aconteceu, mas não menos inesquecível.

Um puto remediado como eu – que me perdoem os meus Companheiros Gloriosos, mas hoje irei falar sempre na 1ª pessoa do singular – assumidamente Benfiquista, tinha sido “formalmente” convidado por uma família sportinguista pequeno-burguesa, a assistir em sua casa e em directo pela TV, do Estádio Olímpico de Amesterdão, à final da Taça dos Clubes Campeões Europeus.

O Benfica, esse meu Benfica de sempre, ia defrontar outro colosso Europeu, o Real Madrid, e aquele garoto, que eu hoje, já velho e bem causticado pela vida estou neste momento a vislumbrar, recordando-o com toda a nitidez, já trazia consigo desde que nasceu, aquela Chama Imensa na sua gloriosa alma.

Para minha felicidade, iria ver a mais empolgante final da Taça dos Clubes Campeões Europeus de todos os tempos!

Quase me parece que foi ontem, tal a intensidade e a emoção com que ainda tão jovem, vivi esse jogo. E são de tal forma indescritíveis esses momentos, que não resisto a tentar fazê-lo neste pequeno texto, para memória futura e como um testemunho indelével para as novas gerações – os meus filhos Benfiquistas bem o merecem, os filhos Benfiquistas de todos os Benfiquistas e em suma, todos aqueles abençoados filhos que têm o Benfica como sua bandeira, também - como homenagem aos grandes jogadores-heróis Benfiquistas desse memorável passado e em geral, a todos aqueles que como eu, têm uma paixão eterna pelo Glorioso de Portugal.

Já lá vão cinquenta anos!

O tempo, tal como hoje, estava instável. Fim de tarde. Lá fora, na Rua 21 de Agosto do burgo viseense, os aguaceiros curtos mas fortes, quase que pareciam cair ao ritmo dos golos do Real.
Puskas, o seu temível avançado-centro, em sete minutos, primeiro numa extraordinária arrancada com remate de longe e depois numa simulação seguida de remate à entrada da área, quase que arrasa o Benfica.

Nos inícios da década de 60, a banda desenhada chegava devagarinho a Portugal. Começavam a aparecer, ainda que com um pouco de atraso as primeiras publicações com aqueles que viriam a ser os meus primeiros “heróis”, para além dos jogadores do Benfica – Astérix e Lucky Luke.

Pois ao minuto 23 do jogo, tal como sempre temiam Astérix e os seus indomáveis companheiros gauleses, pareceu-me que o céu ia desabar sobre a minha cabeça.
Não havia também nenhum buraco por onde eu me enfiasse e por isso lá continuei, meio acabrunhado, encolhido e envergonhado.
Mal tinha começado o desafio e já perdíamos por 2 a 0.Tremia de medo e estava assustado com aquela furiosa e eficaz avalanche espanhola!

Ainda estava a tentar recompor-me desse duplo abanão do húngaro ao serviço do Real, já o Benfica, não se dando por vencido, tal qual aqueles intratáveis gauleses, fazia o primeiro através do fantástico José Águas que com grande sentido de oportunidade recargou uma bola enviada ao poste por Eusébio, na marcação de um livre, encostando para as redes de Araquistán.

O jogo continuava, a esperança renascia, o Benfica lutava, os madridistas empenhavam-se, mas sempre em contra-ataque!

Minuto 34. Cavém, o enorme Cavém, um homem bom, do qual guardo gratas recordações desportivas e pessoais, com quem ainda tive o prazer de conviver e de jogar uma “peladinha”, arranca um portentoso remate fora da área ao ângulo superior direito da baliza do guarda-redes madrileno fazendo estremecer pela primeira vez o todo-poderoso Real Madrid e agitar num frémito louco as bandeiras gloriosas nas bancadas “vermelhas” do Estádio Olímpico de Amesterdão.
Que golão!

2 a 2. Os meus olhos brilharam e voltei a sorrir!

Consegui “libertar-me”. Levantei-me como uma mola do pequeno “mocho” onde me sentava, ergui as mãos ao céu, agora já infinito e bem alto, e gritei golo com todas as minhas forças!
A dona de casa, uma senhora, mãe de um sportinguista amigo que “partiu” cedo, sorriu de alegria depois de me ver completamente desolado.

O Benfica estava novamente a bater o pé aos espanhóis, depois de no ano anterior ter feito o mesmo aos catalães.

O jogo, electrizante, continuava. Não tinham passado muitos minutos e já o incontornável Puskas, num remate sem hipóteses batia pela terceira vez Costa Pereira. Agora, os espanhóis mantinham um maior volume de jogo atacante.
Engoli em seco e disse para os meus botões:
- “Querem lá ver que o filme inicial vai repetir-se?
Cabeçada de Di Stéfano e bola na trave da baliza do Benfica!
Que susto!


Veio o intervalo e com ele algum alívio. Afinal estávamos na luta e aquela “tremideira” inicial tinha passado.
A crença, essa, mantinha-se inabalável. Já tínhamos conseguido anular a desvantagem de dois golos, porque não igualar outra vez a partida, fazendo os 3 a 3?


Reinício da transmissão. Ligação à Eurovisão com a imagem de sempre e o respectivo hino. Novamente Amesterdão e como que emergindo num preto e branco histórico, lá estavam as inconfundíveis camisolas vermelhas, berrantes com a gloriosa águia ao peito e aquela gola branca, solene, dos grandes momentos.

Olha, é o Benfica que lá vem! É o Coluna, o Germano, o Mário João, o Cruz, o Cavém e o Zé Augusto! Olha, aqueles são o Ângelo e o Zé Águas! E também lá está o Eusébio, o Simões e o Costa Pereira! Vamos lá Benfica! – exclamava eu, entusiasmado.

As pessoas, admiradas, sorriam à minha volta. Não era qualquer pequenote que identificava tão bem os jogadores do Benfica. Mas era assim e há bastante tempo. As colecções de cromos e de “selos” dos rebuçados comprados respectivamente no pequeno estabelecimento do “Jaiminho Filatélico” e na “tasca do Gaio” onde eu jogava matraquilhos, ajudavam a reconhecê-los agora com mais ou menos facilidade.


O Benfica jogava cada vez melhor. Faltava o empate e a certeza da glória suprema estar cada vez mais próxima.

Passavam pouco mais de seis minutos do segundo tempo e o Benfica surpreendentemente carregava forte. Num momento de grande inspiração surgiu Mário Coluna, e com ele, um pontapé violentíssimo de fora da área, intencional, pleno de precisão. Bola no fundo das redes e o Benfica empata 3 a 3!

Agora foi toda a Europa que estremeceu e sentiu pela primeira vez o clamor do Grande Benfica – a vitória contra o Barcelona, no ano anterior, não tinha sido por acaso. Mesmo a empatar, o Benfica já estava por cima. O Benfica já mandava no jogo e uma estrela de primeira grandeza com um brilho intenso, começava a despontar no relvado do Olímpico de Amesterdão perante 60.000 espectadores. “O minino que é ouro” - segundo Bela Guttmann, o “velho feiticeiro”, treinador do Benfica à época e um dos obreiros da sua façanha europeia - começa com a sua categoria e talento a desorientar os adversários. Em cima do quarto-de-hora, numa das suas imparáveis arrancadas, Eusébio, ainda um catraio à vista dos senhores José Águas, Coluna e Germano, é atirado “literalmente” ao ar por Pachín, defesa do Real Madrid. Penalty!

Senti, como depois centenas de vezes aconteceu e ainda acontece, as fortes batidas em aceleração, do meu coração. Que ansiedade, meu Deus!

- É o “pretinho” que vai marcar! - disse eu com entusiasmo.

Golo!

Pus a minha cabeça entre as minhas mãos e perguntei-me:
- “E agora, como vai ser?”

A resposta foi rápida e passados três curtos minutos, novamente aquele que viria a ser o melhor jogador português de todos os tempos “arrumou” com o Real Madrid do grande Di Stéfano, Puskas, Del Sol, Pachín, Gento e Santamaría!
Livre à entrada da área do Real, a favor do Benfica. Coluna, com uma exibição galáctica no segundo tempo, tal qual o lendário Germano, agarrou na “redondinha” e determinado como sempre, colocou-a em posição. Eusébio também lá estava, a seu lado, como que um afilhado aguardando pela benção do seu padrinho para dar início à sua entronização real. “The King” como os ingleses ainda hoje lhe chamam, espreitava a oportunidade para bisar depois de várias ameaças…
Tomou aquele balanço único e bem característico da sua insuperável técnica, correu como sempre, ligeiramente inclinado para a frente e com um remate inesquecível, arrancou para a glória suprema – sua e do Benfica!

5 a 3!

Parecia um sonho, aquela estrondosa vitória estava prestes a concretizar-se! O Benfica, o meu querido Benfica estava às portas da glória!

Os minutos iam passando e aquilo nunca mais acabava!
Ângelo, Cruz e Mário João com aquele arreganho à Benfica lá iam, algumas das vezes muito a custo, segurando a defesa, travando Gento, Puskas e Di Stéfano.
Já só faltava um minuto!
Logo a seguir, Leo Horn, o árbitro holandês, dá o desafio por terminado.

O Benfica é Bi-Campeão Europeu!

Muita emoção, muita alegria.
Orgulhoso, senti-me gigante! Senti-me o maior da Europa, do mundo!
Fui desportivamente felicitado com um grande aperto de mãos de parabéns pelos donos da casa e agradeci-lhes infinitamente por me terem proporcionado a alegria de ter visto com os meus próprios olhos algo que eu tanto desejava ver!

Por fim, só me lembro da euforia na Rua Formosa. O tempo, chuvoso, não dava tréguas, mas mesmo assim uma multidão exultava. Uns abraçando-se, outros gritando, Benfica! Benfica! Benfica!
Olhei para o fim da rua junto a uma praça, e vislumbrei outra multidão a subi-la num barulho infernal, em completa loucura com música à mistura. Era um cortejo de centenas de adeptos Benfiquistas, acompanhados pela banda do Lar de Santo António e com uma grande tarja a encimá-lo – Benfica, Bi-Campeão Europeu!

E não me esqueço também de um grande Benfiquista, que trazia sempre na lapela do seu casaco de bombazina cor-de-mel um grande emblema do Benfica cravejado de pedras preciosas (diamantes e rubis) – o já idoso “sr. Isidro do bairro”, fotógrafo do antigamente, com a velha máquina de tripé junto ao antigo cartório e tribunal da cidade, e um exímio “endireita” (para quem não sabe, um ou uma “endireita” é uma pessoa que tem o dom, de com as suas mãos e os seus dedos “endireitar” os ossos, os músculos e os tendões às pessoas que sofrem deste tipo de maleitas) – com um chapéu-de-chuva sui generis publicitando o bi-campeonato, alegremente decorado com emblemas e motivos sobre o Benfica.

A chegada do cortejo ao Rossio foi um estrondo.

Se no ano anterior tinha assinado para sempre pelo Benfica, a partir deste dia nada mais foi igual. Passei a ser um “combatente” Benfiquista de primeira linha, “contra ventos e marés”.
O Benfica passou inapelàvelmente a fazer parte integrante da minha vida.
Até morrer!

A história do Benfica é épica! É ímpar e única!

Hoje pela manhã, quando disse aos meus catraios, antes de irem para escola, que se comemoravam os 50 anos deste feito inigualável e do qual por motivos óbvios não conseguem ter a real dimensão do mesmo, disse-lhes:
- “Meus filhos, posso já cá não estar, mas acredito que não tardará o tempo em que o Benfica chegará novamente ao topo da Europa e do Mundo.
E aí irão ver o que é o Benfica.
Mesmo assim, e porque a minha fé é infinita e acredito que o Benfica é uma força incomensurável ainda quero ver novamente, “com estes meus olhos que a terra há-de comer” o nosso querido Benfica sagrar-se Campeão Europeu!”

Mostrei-lhes a litogravura desse tempo que meu Pai me deu e que guardo religiosamente e em que estão esses 11 magníficos, posando para a posteridade.

Chorei de saudade e de emoção, mas sempre com um sorriso de esperança e de fé!

Viva o Benfica!

Sempre!


GRÃO VASCO

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