No sótão da velha mansão
do seu tio-avô, Barrote de Carvalho,
sentado no chão, de pernas cruzadas e sobre uma esteira carcomida pelo bolor da humidade, mirava fascinado uma
velha pasteleira, enquanto extraía mais um macaco das suas ventas.
As enormes teias de
aranha acumuladas ao longo de três décadas, escondiam o verde-alagartado dos
seus guarda-lamas e a ferrugem nos aros e raios das suas rodas com os pneus em
baixo. Mas mesmo assim continuava imponente.
Nesse sótão de memórias
lá regressavam as lutas titânicas dos anos trinta do século passado, ao longo de sinuosas estradas, algumas ainda no poeirento ou lamacento macadam, outras nas já alcatroadas ou em paralelo, obras do Estado
Novo, lembrando a suprema rivalidade entre Nicolau e Trindade.
Por momentos, um raio de
luz penetrou por uma pequena fresta de uma telha levantada pela recente
intempérie. A pasteleira brilhou àquele sol como uma bicicleta de campeão num
pico de montanha. Barrote contemplava
a cena extasiado. Mas não estava sózinho. Acompanhava-o Olímpio Vicente, um ferrenho adepto do lagartêdo que há muito tinha mandado o seu olimpismo às malvas,
para segurar Barrote e o seu tutor, o
Jaiminho, conhecido em Poiares pelo Atiça-fogos. Também ele estava babado a
olhar para a fascinante máquina.
Barrote, um gorducho
entusiasmado pelos feitos leoninos de outrora em cima daquele vetusto veículo
de duas rodas a pedal, expirou profundamente e disse baixinho para o seu comparsa:
- Olímpio, vamos formar uma equipa fantástica de ciclistas para
darmos cabo de uma vez por todas daqueles intragáveis lampiões e dos seus 400
milhões da treta. Agora é que eu lhes vou demonstrar quem é que tem realmente
pedalada! Vou percorrer o país todo, na Volta a Portugal e de terra em terra,
de lugar em lugar, de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, vou fazer um
peditório tal que não vou precisar de milhões, nem da Nós nem de Vós!
Olímpio, debruçado sobre a sua Olivetti portátil, uma “hcezarops” dos tempos da Guerra Colonial, metia a todo o gás a folha A4 no rolo da máquina de escrever, pronto para redigir o contrato com que Barrote sonhava. Este, por sua vez, rejubilava, abanando frenéticamente uma imaginária bandeira de xadrez armado em director de corrida e Olímpio, no imediato e num assomo de juventude, com o seu boné enfiado ao contrário e de pála virada para cima, já “sprintava” empoleirado na pasteleira, sacudindo as teias de aranha que se agarravam às baínhas das suas calças de bombazina côr de mel.
Ambos sonhavam já com as
metas no alto da Torre, nas Penhas Douradas e no monte da Sra. da Graça.
Mas eis que de um momento
para o outro tudo mudou.
Não, não podia ser!
A campaínha do portão
principal tinha tocado três vezes. Barrote
e Olímpio desceram as íngremes
escadas do sótão, atabalhoadamente, ávidos de firmar o acordo com os segundos
outorgantes. Quando abriram o pesado portão de entrada e encararam aterrados,
com o rei das bicicletas de Palermo
sorrindo, recuaram assustados. Não era por ele que esperavam…
- Costa, que queres a esta hora? – perguntou atarantado Barrote
de Carvalho.
O rei de Palermo, naquela sua parola e "fina" ironia de sempre, gargalhando
cavernosamente, não hesitou:
- Meus caros, é só para vos comunicar que as minhas bicicletas
da marca W52 vão ser movidas a peido, ok?
Após esta jogada de
trunfos na manga, o mafioso sorriu e abandonando o pelotão, abalou veloz numa fuga solitária de
quilómetros, deixando Barrote e Olímpio envolvidos numa discussão
estéril sobre doping e à espera do
carro vassoura!
Mas estes, só se
aperceberam que estavam desclassificados quando pela televisão, viram Costa no
pódio envergando a camisola amarela e a receber dois beijinhos de duas alternadeiras do Calor da Noite!
GRÃO VASCO