*** Para leitura na véspera de Ano Novo
Um encontro matinal,
dois aconchegantes cafés à beira-mar, uma brisa passageira numa atmosfera plena
de romantismo e por fim uma proposta simplesmente irrecusável – doze dias no
Quénia num safari fotográfico com estadia num dos lodges mais luxuosos de Masai Mara, um dos seus fantásticos parques
nacionais!
Um convite pleno de glamour da princesa mais bela da minha
adolescência, hoje uma mulher riquíssima, liberta de compromisso, acenando-me com
o revivalismo de uma tórrida paixão e a oportunidade de recordar tempos únicos
na África colonial e das grandes caçadas de outrora.
Agosto quente de um ano
qualquer. Bagagens prontas e partida de Lisboa a meio da tarde, com escala em
Londres. A noite, a bordo de um Boeing 747-400
da British Airways decorre serena, só se ouvindo o som contínuo e
monocórdico dos seus motores. Aos primeiros raios de sol, através da pequena
janela junto à asa começam a vislumbrar-se os edifícios mais altos de Nairobi
envoltos na bruma. A seguir, surge a baixa altitude Mombasa Road, via principal que liga a capital à infraestrutura
aeroportuária. Momentos depois, já com os cintos de segurança colocados, a
gigantesca aeronave pousa suavemente na extensa pista do International Airport Jomo Kenyatta, um dos maiores e mais
importantes de todo o continente africano.
Desde os países
magrebinos a norte, até ao Egipto dos Faraós, passando pelas areias douradas do
Sahara, penetrando na África Negra
pelos paraísos de fauna selvagem até às zonas das florestas equatoriais com os
seus extraordinários gorilas de montanha, atravessando Angola e Moçambique e os
seus grandes rios, terminando no Kruger
Park no sul do continente, a realidade de todo um continente primitivo e
selvagem exerce um fascínio ímpar e inexplicável a qualquer ser humano que por
lá passou e viveu.
Muitos portugueses na
excursão. Entre eles um Trota-Mundos
compulsivo, velho conhecido de outras andanças e carnavais e que me esclareceu
sobre a estranha presença de tantas individualidades do mundo futeboleiro
indígena. Algumas delas desceram do transfer
nas imediações do motel “Piolho do
Kilimanjaro”, um alojamento de duas estrelas, mais conhecido pela “pensão das baratas voadoras” e que na
porta principal tinha colado na vidraça um aviso em letras garrafais – “Carefully! AIDS in movement! Don´t Forget!
Use always condom!”. De entre as diversas personalidades, reconheci o famigerado
alquimista da verborreia, prof. dr. Jorge Amoral, um gigantone falante, “Ex-Mãos de Manteiga”, o detestável free lancer Bítor Minto também conhecido pelo Fontes do Espírito Santo d’Orelha e o labrego das estações de serviço,
barrasco do direito já fora de circulação, nado, formado e criado no antro da
corrupção, “profissional de baderna”, dr.
Aníbal Tinto. Era assim, certo e sabido, que aquele impagável trio ia
alojar-se numa pensão de putas. Na
paragem seguinte saiu um pequenote, mesmo em frente a uma loja de aluguer de
automóveis com condutor, a “Nairobi Gnu
Rent-a-Car”. Dirigiu-se de imediato para uma antiga carrinha VW Pão de Forma a diesel, adaptada a auto-caravana, com o assento ao lado do condutor
elevado por quatro almofadas em pele de crocodilo forradas com penas de
flamingo e cujo destino imediato indicado na parte superior do pára-brisas era
o parque nacional Masai Mara, uma reserva de caça queniana rica em fauna
selvagem, com destaque para os seus bandos de leões e que confina com o Serengeti,
na Tanzânia. Uma opção diferente que não imaginava, mas que passados alguns
instantes, no transfer, Trota-Mundos me explicou porquê.
Essa pequena figura,
semelhante a um pigmeu africano albino, era nem mais nem menos que o “super-soda” Ruinzinho Santos que
aproveitando os seus idiotas tempos-extra
e as sucessivas fracas audiências no seu programa semanal de TV no seu país, reiniciava uma tarefa,
outrora inacabada noutras longínquas paragens, mas agora esperando um maior
sucesso num ambiente mais leonino.
Em tempos, tinha sido incumbido
pelo Capitão Fred, um autêntico rambo leonino no Afeganistão - ouvia
relatos de futebol do seu grémio
debaixo de intenso e ruidoso fogo inimigo, em simultâneo mandava umas
fogachadas para os calhaus circundantes segurando a sua shot gun com a mão direita e com a outra, através do seu iphone filmava-se em grandes planos para
a posteridade - para encetar uma missão neste país em busca do ADN perdido do lagartêdo, algo que se
esfumou na voragem dos tempos e hoje muito difícil de recuperar. De salientar
que esta busca começou quando Cap. Fred
se encontrava em Cabul, integrando um contingente da Força de Reacção Rápida em
missão da NATO no Afeganistão e
centrou-se nas Montanhas do Panjshir, para onde Ruinzinho, disfarçado de mujahedin,
viajou montado numa burra, incluído numa comitiva de maltrapilhos, espiões, traficantes
de ópio e guias especializados naqueles trilhos traiçoeiros – durante os primórdios da sua estadia noutra
cidade, Kandahar, ninho dos talibãs, para se adaptar em pleno a este meio tão
hostil, deixou crescer barbicha, frequentou várias madraças ficando a saber de
cor e salteado o Corão, rezou em mesquitas aprendendo os rituais religiosos
islâmicos, realizou exercícios linguísticos orais e escritos todos os dias, fez-se
acompanhar sempre de uma agente dragarta-afegã com burka azul-escura e até
adquiriu no grande bazar daquela cidade a habitual indumentária do povo deste
país (colete cinzento, túnica branca, calças largas genuínas, sandálias de
tiras de cabedal e pakol, o chapéu afegão, pois não se dava muito bem com aquela
rodilha que antes lhe tinham enfiado em redor do cocuruto) transformando-se num
típico anão afegão – em busca das fezes de Ahmad S. Massoud, cognominado “O Leão do Pansjhir”, um líder guerrilheiro
famoso na luta contra a usurpação soviética e posteriormente contra o domínio talibã e apoiado pela Aliança do Norte
constituída por elementos de algumas tribos daquela zona do país, começando assim
nessas terras inóspitas a busca incessante do tal ADN. Os planos do Cap. Fred e
de Ruinzinho saíram gorados quando souberam
do assassínio desse general num atentado perpetrado pela Al Qaeda no seu
próprio esconderijo. Ruinzinho ficou
assim sem saber qual a caverna que servia de latrina privada a este intrépido líder
militar, não tendo conseguido recolher nenhuma matéria excrementícia do dito “Leão do Pansjhir” para a detecção do
desaparecido ADN. Após mais uma série
de peripécias envolvendo sementes de papoila e seringas à mistura, Ruinzinho lá regressou ao seu país a toque de caixa e ao seu execrável
programa das perguntas manipuladas e canalhas e das suas sondagens anti-gloriosas.
O meu amigo Trota-Mundos prometeu aparecer à noite,
no hotel onde ficámos hospedados, para me explicar a razão, segundo as suas
informações privilegiadas, da presença de Ruinzinho
Santos no grupo excursionista e da “expedição científica” ao Quénia daquela
delegação do fruta corrupção & putêdo
mandatada pelo dr. Pulga, uma
escumalha de parasitas que o ousado aventureiro conhecia de ginjeira dos seus
tempos de frequentador do Inferninho, da Pérola Negra e da Taverna do Infante
na Inbicta, quando ainda jovem era
engajador, angariador e fornecedor de prostitutas brasileiras para aqueles e
outros locais de perdição noturna e de devassidão de árbitros de futebol.
Assim, entre umas fumaças de um cohiba
e uns goles de martell cordon bleu lá
fomos sabendo ao que vinha aquela tropa
fandanga.
Segundo Trota-Mundos, em Palermo do Douro verificava-.se uma falta de “matéria-prima” gritante, absolutamente necessária para manter os
níveis físicos cavalares dos atletas do grémio
da fruta corrupção & putêdo. A baba
de caracol e as placentas de égua
escasseavam no país e no mercado paralelo atingiam preços incomportáveis,
exorbitantes, afectando significativamente o orçamento do dito cujo grémio, já limitado financeiramente pelas
imposições do organismo futeboleiro europeu. Assim, ficámos a saber que aquela
tríade que se tinha alojado no “Piolho do
Kilimanjaro” e financiada por Moreira
del Guito, vinha em busca de novas substâncias animais que fossem
compatíveis com a baba e a placenta referidas. Para isso era necessário
encontrar antes de tudo um especialista local que encontrasse na fauna queniana
algo em abundância que substituísse a mistela
milagreira que até à data era usada por infiltração, aplicação tópica ou em
comprimidos e xarope, importada de Xangai, na China, que aumentava e de que
maneira a agressividade dos atletas e os fazia galopar como cavalos de corrida,
em velocidade permanentemente elevada durante horas a fio. E então agora, com a
incidência pandémica do novo vírus nesse país asiático, todos os cuidados eram
poucos.
Ao fim do primeiro dia
em terras africanas ficámos a saber que para lá do encanto de uma viagem
fascinante que nos era romanticamente presenteada, havia na excursão tuga duas missões secretas de alguns
compatriotas e que se conjugavam na perfeição – uma, “a busca do ADN perdido” e a outra, a “do elixir cavalar”.
Ao segundo dia, logo
pela manhãzinha, passeámos pelo parque nacional de Nairobi, sete quilómetros a
sul da capital, cuja cerca eléctrica que o envolve, separa a vida selvagem dos
seus subúrbios. Um contraste incomum, marcante, foi a observação dos animais e
da savana, tendo como pano de fundo a civilização e o progresso espelhados nos
altos edifícios da metrópole queniana. A excursão privada proporcionou-nos um
dia muito tranquilo de adaptação ao clima e ao próprio ambiente. A meio da
tarde tomámos um pequeno Cessna
monomotor de vinte lugares da Air Kenya no aeroporto Nairobi Wilson com destino
a Angama Mara, um lodge luxuoso e
espectacular a duzentos quilómetros da capital, no limite norte da reserva de
Masai Mara. O vôo de hora e meia e com chegada às 18:30 h proporcionou-nos o
primeiro espectáculo destas férias – um pôr-do-sol deslumbrante, uma recepção calorosa
na chegada ao alojamento com o sol já escondido atrás da linha do horizonte, um
céu côr de fogo inesquecível e um jantar ao lusco-fusco, à luz das velas,
absolutamente fabuloso.
No dia seguinte, outra vez ao raiar da aurora, começou a nossa aventura pela extensa savana numa confortável pick up Land Cruiser verde-escura adaptada
para este tipo de eventos. Parámos para contemplar e fotografar todo aquele
fervilhar de vida selvagem. O capim crescido, mesmo à nossa frente, surgia
ondulante como uma seara dourada. No seu interior destacava-se uma silhueta
humana, estranhamente agachada e imóvel. Aproximámos o zoom da nossa Cannon
professional e constatámos que alguém, contra o vento, estava ali a
defecar. Ali? Em local tão perigoso?
Ei homem,
precisa de alguma coisa? – gritei-lhe em inglês.
Só se
forem umas folhas macias de papel higiénico da Scottex! – respondeu ele sorrindo,
com uma boa dose de humor.
E continuando agachado,
apontou para uns cinquenta metros à sua frente soltando… um pedido:
- Digam
lá àquele baixinho que anda ali armado em aprendiz de feiticeiro, com as botas
e calções do pai, meia até ao joelho, fato e chapéu colonial, às voltas daquela
grande acácia, que os leões não cagam debaixo das árvores e que mantenha os
olhos bem abertos senão é papado num instante!
Não era coincidência,
não. Era mesmo Ruinzinho Santos em
busca do ADN perdido. Agora em Masai Mara, onde os leões deambulam por todo o
lado à procura de umas boas nádegas fresquinhas.
O inglês sabia bem o
que dizia e quando se ergueu após ter desanuviado a tripa, reconhecêmo-lo. Era Sir
David Attenborough, o célebre naturalista inglês!
Uma saudação matinal,
duas larachas de ocasião com o mestre, já rodeado dos seus acompanhantes, seis experientes
guerreiros masai e lá continuava Ruinzinho
munido de lupa, balde e pá de praia amarelos, comprados numa promoção de verão
do Léclerc, rede caça-borboletas ao
ombro, em busca dos preciosos cagalhotos
leoninos. Para a posteridade posámos com Sir David, solicitando-lhe um
autógrafo no nosso diário de viagem bem
como registámos em vídeo as cenas
cómicas da pressuposta recolha excrementícia de Ruinzinho Santos.
Pelo meio da tarde, um
longo passeio de balão ofereceu-nos uma visão impressionante da savana, das
grandes manadas de herbívoros, das elegantes girafas e por fim mais um pôr-do-sol
único.
Os dias seguintes foram
passados na reserva, embrenhando-nos em zonas bem conhecidas pelos guias que
nos acompanhavam e que nos ensinaram muitos segredos da vida animal, precauções
e procedimentos a ter na iminência de encontros fortuitos com as feras.
Numa das noites,
fomos convidados por um chefe tribal dos Masai para jantar e assistir a várias
danças e tradições da sua aldeia. Surpreendentemente, à nossa chegada, um grupo
de mulheres jovens nativas e a sua pequenada começaram a cantar e a soletrar
repetidamente umas palavras – “karibu mama
mzungu, karibu mama mzungu, karibu mama mzungu…”, envolvendo a minha
companheira de aventura e presenteando-a com os melhores artefactos da tribo,
acompanhados de sucessivas vénias, palmas e cantares. Perguntei aos
funcionários do lodge qual o
significado daquele cerimonial. Eles, comprometidos, sorriram, mas lá foram
dizendo que era a versão de “benvinda mãe
branca” em swahili. Rodeada das
jovens, ela sorria perante a minha perplexidade, mas no regresso ao lodge não resistiu e acabou por contar
um episódio pessoal inesquecível. Médica de profissão, aquando de uma expedição
a estas paragens há pouco mais de duas décadas, integrada numa equipa médica de
uma ONG, salvou três grávidas desta
aldeia de partos complicados e dois homens gravemente feridos por ataques de
leões. O chefe tribal, simpático e hospitaleiro, não se esqueceu do companheiro
da homenageada. Ofereceu-me uma manta
masai vermelha – a Shuka – com um
interessante padrão de motivos geométricos, uma lança dos seus guerreiros e o
lugar à sua esquerda no jantar, com a médica à sua direita. Rendi-me, solenemente,
a tamanho reconhecimento e gratidão a uma princesa branca que este povo nunca
esqueceu.
Entretanto, em Nairobi,
a tríade alojada na pensão das baratas
voadoras passou a quadrilha, à chegada de Moreira Del Guito. Enquanto esperavam pelo boss, dedicaram-se durante dois dias a um “safari erótico” onde percorreram uma imaginária savana nos três
andares e na cave do motel. Um deboche medonho numa autêntica selva onde valeu
tudo, tudo, com gajas nuas e em cuequinha fio dental a gritar nos quartos e
outras a fugir pelos corredores ao esconde-esconde, perseguidas incessantemente
por Bítor Minto e Aníbal Tinto também nus, só com uma
gravata ao pescoço, pôdres de bêbedos e com o prof. dr. Jorge Amoral em tronco nu e ceroulas refresh atrás do balcão do bar do hall principal, agarrado a uma velha gorda kikuyo de cuequinha de lantejoulas com uma pluma branca no
rabiosque a tentar acalmar as hostes. Após esta desbragada orgia tropical e já
com Moreira Del Guito a orientar a
trupe, chegou ao motel proveniente de Mombaça, um dos elementos chave da
operação “Elixir Cavalar” – Feliciano Telles de Pinamóia, primo
afastado do idiota aristocrata Billas Bôas,
ex-supermorcão, vendedor da banha da
cobra e de pacotes de água a ferver no Canidêlo, com um grande cadastro no seu
país, procurado pela Interpol, radicado há uma década no Quénia, hoje um expert em contrabando de marfim, pedras
preciosas, estupefacientes e todo o tipo de mascambilhas. Dedicou-se em tempos
ao tráfico de aves exóticas e animais selvagens, chegando mesmo a exportar um pequeno
hipopótamo para as courelas de Chico Trafulha
“O Insolvente”, em Palermo do Douro. Pinamóia, proprietário de quatro ervanárias em Mombaça, seria o elo
de ligação entre o famigerado quarteto e o xamã
Papa-Léguas, seu sócio fifty-fifty
nas lojas, renomado feiticeiro e conselheiro espiritual dos campeões quenianos
dos cinco, dez mil metros e da maratona, que vivia num lugarejo próximo da
fronteira com a Tanzânia na reserva de Masai Mara. Papa-Léguas não era um ilustre desconhecido. Já tinha visitado Palermo do Douro aquando da realização
nessa cidade do XXVI Congresso Mundial de
Feitiçaria e Ocultismo, onde conheceu Pinamóia,
Mestre Albes do Celse “O Tonalta” e o
Bruxo de Fafe e onde apresentou em exclusivo,
a tão propalada “Sopa d’Avó” – um coktail estimulante posteriormente
adoptado por muitos atletas mas logo proibido pela WADA (AMA, em português – Agência Mundial Anti-Dopagem).
Atendendo à grande
distância entre a capital e o lugarejo fronteiriço, Del Guito optou por requisitar à Tropic Air Kenya um helicóptero panorâmico Airbus H 125 que no dia seguinte, pela manhã, descolou do Nairobi
Wilson com toda a camarilha de Palermo do
Douro a bordo. O vôo de aproximadamente três horas decorreu sem incidências
de maior com Minto & Tinto
maravilhados com os cenários de vida selvagem e as sucessivas paisagens, com o prof. dr. Jorge Amoral cochilando e aproveitando
para largar alguns torpedos e
prolongados rasgadores abafados pelo
seu próprio pigarrear e pelo som matraqueado da aeronave e com Del Guito conspirando com Pinamóia. Já o sol ia alto quando da
vista aérea panorâmica do heli,
começou a surgir no horizonte um pequeno planalto onde se situavam sete cubatas
rodeadas por uma cêrca de dois e meio a três metros de altura, tipo paliçada,
formada por estacas de acácia. Era a aldeia do xamã Papa-Léguas, ele próprio o chefe desse pequeníssimo povoado.
Papa-Léguas, um masai de rosto
vincado pelo sol e pela dureza da vida, muito alto e esguio empunhando um
bordão de acácia encimado com uma cabeça de leão embalsamada, enfarpelado a
rigor com uma fita colorida de missangas à volta da cabeça, adornada por quatro
grandes plumas pretas de avestruz, uma bela estola de pele de leopardo, calções
de lycra vermelhos Paco Rabanne e no pulso esquerdo um Frank Muller em ouro da mais recente
colecção da marca, aguardava pelos visitantes à entrada principal do aldeamento.
Ergueu os seus longos braços ao céu e exultou com Pinamóia:
- Welcome Felice! How are you, my white brother?
Feliciano
Telles de Pinamóia
após abraçar efusivamente o feiticeiro, apresentou a restante comitiva, com
destaque para Del Guito. O diálogo deste
com o xamã foi curto e objectivo.
- Nice to
meet you and your laboratory! – disse Del
Guito, olhando para ele e para a grande cubata de paredes feitas de bosta
sêca de vaca sustentadas com estacas de acácia, mas a única com o tecto de
colmo.
- Nice to
meet you and your dollars too! – respondeu com um sorriso malicioso o xamã,
convidando-os ao mesmo tempo para entrarem na rudimentar construção que
dispunha de várias valências – habitação do próprio, consultório, restaurante,
laboratório, escritório, “casa de câmbios” e sala de conferências.
À porta, uma tabuleta
grande de papelão bege canelado com um desenho do boneco gordinho da Michelin sobre duas estrelas, com a
palavra restaurant e logo por baixo a
ementa do dia – túbaros grelhados de
elefante ou rabo de chita estufado
acompanhados de esparregado de gafanhotos.
Uma outra, do outro lado da entrada, continha os dizeres correspondentes às
diversas funcionalidades da cubata.
Entrementes, Bítor Minto esboçou um esgar de incómodo
e desagrado, com Tinto e Amoral a sorrirem e a apontarem para as
suas pernas. Distraído e deleitado com as maminhas arrebitadas das jovens
nativas, tinha enfiado os pés numa poça de esterco de vaca – para os masai é
material de construção e não se pode desperdiçar - ficando atulhado de merda
até aos joelhos. O free lancer de
pacotilha, um tarado sexual incorrigível, fedia. O xamã viu-o tão
atrapalhado que lhe disse para tirar os sapatos, as meias e as calças, mandou
algumas nativas lavarem-lhe as pernas com mijo de vaca, ofereceu-lhe umas
alpercatas em tiras de pele e cascos de búfalo e uma shuka comprida de côr azul-cobalto para lhe tapar as partes fodengas, dado que não ficou com nenhum
par de cuecas da noite louca vivida na pensão
das baratas voadoras.
Ao almoço realizado no “Palácio” - os nativos da aldeia assim
apelidavam a grande cubata, um autêntico open
space dos tempos modernos – composto por paté de mosquitos com mel de abelha peluda, canja de marabu, iscas de
fígado de rinoceronte e mousse de formigas mandinga baaba, oferecido pelo xamã, tudo acompanhado com um Bordeaux dez anos, enviado por Simba Makumba, colega de Papa-Léguas a exercer em França - ficou
definida a fórmula do elixir cavalar
que antes de ser exportado para Palermo
do Douro iria ser testado em alguns guerreiros da tribo. A baba manteve-se no composto, mas agora
seria extraída da lesma cornuda africana,
um gastrópode muito abundante naquelas paragens, feromona líquida de pachacha de búfala para fornecer ainda mais
impetuosidade e agressividade e sémen de
mabeco, com o objectivo de prolongar a resistência para além de cento e
vinte minutos, atendendo ao facto destes canídeos perseguirem em grupo a sua
presa durante trinta e cinco a quarenta quilómetros até à sua exaustão,
despedaçando-a logo de seguida. O prof.
dr. Amoral, após afinfar à bruta no néctar gaulês, arrotar que nem um
hipopótamo e ferrar umas sonoras bojardas seguidas, abafadas pelos tambores do
conjunto musical que abrilhantava o festim e diluídas no cheiro a bosta frêsca
usada como betume no preenchimento das rachas das paredes do “Palácio” - principalmente na ala sul,
local onde os elefantes e os rinocerontes se encostavam para coçar o cu -
resultado da requalificação recente do imóvel, deu o seu agreément, abanando lenta e afirmativamente a sua cabeçorra calva
de morcão. Del Guito chamou Aníbal Tinto para redigir a acta da reunião
e elaborar o contrato de compra à Papa-Léguas
& Co. de duas mil e quinhentas doses por época, renovável por cinco
anos, exportadas para Palermo do Douro
à média de duzentas doses por mês devidamente acondicionadas e previsivelmente
suficientes para a equipa e seu staff
quando realizassem cada um dos cinquenta jogos-chave por época. Minto, novamente com uma carraspana de se lhe tirar o chapéu,
olhava fixamente para uma atraente masai
fazendo-lhe corninhos e caretas, levantando provocatoriamente a shuka, ao que ela respondia com uns belos
piretes e manguitos à moda de Masai
Mara. O free lancer ria-se, batia
umas chapas com o telemóvel, coçava a tomatada, até que se lembrou do que tinha
de fazer para enviar, na hora. Era a reportagem para o Calinadas da Manhã, seu jornal/TV de estimação para o directo da
ordem, via Skype. Parou a palhaçada e
pôs-se a dar cordinha às alpercatas, pois já era mais que tempo. Enquanto a
reunião decorria, Pinamóia dirigiu-se
para a cubata da melhor mulher da aldeia. Uma mulheraça. Ao fim de uma hora
chegou à entrada do “Palácio”, imitou
o som gutural dos gorilas, mandou umas murraças no peito e apontou com o
polegar direito para si próprio. Um autêntico macho man.
O laboratório fascinava
Del Guito. Nas prateleiras do espaço,
antigas latas de óleo da BP e da Shell rotuladas com etiquetas adquiridas
no Staples de Mombaça agora
transformadas em pequenos recipientes de todo o tipo de substâncias animais e
vegetais e as garrafas de vidro transparente de gasosa e água tónica contendo
uma gama variadíssima de chás, loções, mezinhas, beberragens e elixires,
despertaram a atenção do boss. Ele
procurava uma substância a pedido do seu velho amigo papa-putas de Palermo do
Douro. O ancião D. Corleone do Freixo desejava substituir com urgência o implante peniano avariado pela ferrugem
e pelo uso. Quando Del Guito
percorria a mais alta prateleira da estante, exclamou, “Eureka!”. La estava ela. Uma loção em frasco, com o rótulo “Pimba!Pimba!Pimba!”, de aplicação tópica,
que continha testosterona de babuíno
e geleia real de abelhões da savana e que começava a fazer os seus efeitos em meio minuto. Papa-Léguas que utilizava esta bomba erótico-sexual várias vezes,
nas noites em que mudava cinco vezes de cubata, prometeu criar uma formulação
injectável de acção ainda mais rápida e prolongada.
Por fim acertaram-se as
contas e Del Guito adiantou uns bons
milhares de dólares que o xamã guardou num grande cofre-forte monobloco e
digital. Tinto e Amoral aproveitaram as promoções “compra um leva dois”, acabando cada um deles por adquirir quatro
frascos. Minto agarrou nas últimas
notas que trazia e adquiriu um caixote de cem unidades. Del Guito, na sua presunção e vaidade de sempre, disse que não
precisava, mas o feiticeiro ainda lhe ofereceu um frasco da milagreira loção
sexual para a viagem de regresso e um extracto
de hemolinfa de mosca tzé-tzé para adormecer os inimigos.
De regresso a Nairobi,
os estômagos chocalhavam. A vinhaça actuava em pleno. Amoral parecia uma autêntica jiboia a bufar e ressonava como um
porco, Aníbal Tinto regurgitava e ao
mesmo tempo revia o contrato com a Papa-Léguas
& Co. na hipótese de ir buscar algum.
Pinamóia e Del Guito falavam em novos “negócios” e Bítor Minto com os olhos semicerrados delirava com os vapores de
álcool a subirem-lhe à cabeça, balbuciando repetidamente “Hakuna Matata. Hakuna Matata, Hakuna Matata”... (Hakuna Matata, em sawhili, significa “não há problema” ou “não te preocupes”). O
piloto bem tentava travar aquela agitação e acabar com aquela lengalenga. Nada
melhor do que fazer duas raviangas no
ar com o helicóptero, pensou ele. Pior a emenda que o soneto. Minto, já completamente nauseado, sonhando com filme da Disney “O Rei Leão”, pensando estar a voar ao
ar livre como um pássaro, arranca uma regurgitadela
seguida de uma sucessão de vómitos que
borra por completo a parte traseira e metade do tecto do vidro panorâmico da
aeronave. Amoral acorda estremunhado,
todo encharcado de bôrras do Bordeaux,
de mosquitos do paté e da mousse de
formigas. Os outros três escapam por pouco.
-O que é
que ele está a dizer?
– perguntava Del Guito preocupado.
No meio daquele barulho
do motor do helicóptero, Aníbal a
rir-se como um doido também com um grão na asa, com Amoral a sacudir a mosquitagem,
o formigal e as iscas da roupa, atirou:
- Ó
chefe, ele está a dizer que bocê é um patarata, carago!
O horrível cheirete a
álcool com o vomitado a escorrer e a pingar do vidro panorâmico do heli para cima dos ocupantes, era pior do
que a malina de bosta de vaca no “Palácio”
da aldeia masai. Todos eles, rotos da viagem, completamente de rastos, seguiram
de imediato para o motel, anulando dois safaris eróticos programados para o
resto da estadia. Acabaram adoentados, com disenteria e confinados aos quartos
do hotel até à viagem de regresso.
Penúltimo dia da nossa
estadia maravilhosa em Angama Mara. Mais um pequeno safari sempre pela manhãzinha, e pela
tarde já na pista do aeródromo prontos para entrarmos a bordo do Cessna que nos levaria novamente à
capital, para de seguida tomarmos, pelo anoitecer, o vôo para Lisboa com escala
novamente em Londres. Ao longe, perto de um jovem leão que se anichou mesmo ao
fundo da pista, vislumbrámos a carrinha VW
Pão de Forma de Ruinzinho Santos, fácilmente reconhecível pelas cores preta, vermelha
e verde com o escudo cruzado por duas lanças, bandeira do país, com o condutor gesticulando
e a chamá-lo para fazerem atempadamente a viagem de retorno a Nairobi – são cinco
horas e meia por estrada, sem parar. Era a derradeira recolha excrementícia,
talvez a mais importante para a detecção do ADN
do lagartêdo. Ruinzinho ainda aproveitou para enfiar num frasco largo de vidro, de
conserva de azeitonas, já devidamente esterilizado, dois escaravelhos “besouro rola-bosta africano", macho e
fêmea, para fazer criação e usá-los como agentes de limpeza no quintal de sua
casa.
Hora da partida do
Quénia. Na sala de embarque, pesaroso, Ruinzinho
Santos. Enquanto tinha ido à agência de aluguer pagar a conta, os serviços
da empresa já tinham levado e lavado a carrinha, despejando no lixo os sacos de
merda leonina que faziam parte do seu espólio. Salvaram-se os escaravelhos.
Missão falhada. Doze dias de trabalho extenuante completamente jogados pela
janela fora. A quadrilha de morcões apresentou-se muito pálida e abatida. Desolados,
desconheciam o paradeiro de Pinamóia. Já no aeroporto, Trota-Mundos disse-nos que o comparsa dos quatro morcões, radicado neste país, num momento de distracção do grupo, tinha surripiado da mala diplomática de Aníbal Tinto o original
do contrato de compra do elixir cavalar,
avisado o xamã de que a droga deveria ser enviada para as suas ervanárias,
pisgando-se rapidamente para Mombaça. Um desastre em toda a linha, restando
unicamente os frascos da loção sexual para trazer para Palermo do Douro e entregar a D.
Corleone do Freixo.
Quanto ao meu romance e
à sua detalhada história ficarão para outras núpcias.
Um bom safari a todos e
um bom ano de 2021!
GRÃO VASCO